segunda-feira, 30 de março de 2020


Prólogo:

Estou reativando este blog no período de distanciamento social motivado pela pandemia do novo coronavírus. Estamos – nossa geração – vivenciando a morte: dos estrangeiros, dos brasileiros, dos conhecidos, às vezes até dos familiares, quem sabe mesmo a iminência da nossa própria morte? Cientistas e intelectuais têm dito que o mundo como conhecemos está morrendo, que mudanças profundas acontecerão, que nossa vida já mudou, que não somos mais os mesmos. Se não sou mais a mesma, posso então fazer o que nunca admiti fazer, ou que nunca investi realmente em fazer. “Se o mundo fosse acabar, me diz o que você faria?”, pergunta o Moska. Eu vou escrever. Não que vá fazer isso muito bem feito para o meu padrão de exigência, não que seja uma grande epifania e eu vá conseguir tudo o que eu queria, mas vai ser no estilo “escreva qualquer coisa, porque o mundo está acabando mesmo”. Então aí está - partilhemos.

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Cozinhando

Fabiana Esteves Neves - 29/03/2020

A meu favor, devo dizer que não sou uma burguesinha total, sim, eu já cozinhava antes do distanciamento social, mas sem regularidade, afinal, a correria da vida, muito trabalho... (a justificativa já confirma o que se tenta negar, como se vê).


Enfim, cozinhando agora sistematicamente e de forma concentrada, porque estou conseguindo reservar um tempo só para isso, descobri nesta manhã de domingo a multiplicidade de sentidos que o cozinhar mobiliza: o tato, a visão (para quem vê) e o paladar são mais óbvios; menos evidente para mim era a audição, e menos ainda o olfato. O som de uma panela chiando era assustador, sinal de que algo está queimando, erro supremo! - acompanhado do cheiro de queimado. Fui dourar cebola para cozinhar frango, como já tinha feito outras vezes, e tive que controlar a ansiedade com o som do tempero “pegando” (calma, é assim mesmo...). Aí me surpreendi com o cheiro, não mais com ser um cheiro de queimado, mas com reconhecê-lo. Minha memória olfativa é canina, tanto aguçada quanto fiel; ela traz de volta cenários nítidos. Dessa vez, o aroma me lembrou o que sentia nas tardes de estudante, em casa, quando minha mãe ou Luiza cozinhavam, e eu no quarto era distraída por aquele mesmo cheiro de queimado. Eu estudava, apenas, alheia ao mundo real das panelas; mas aprendia a reconhecer o cheiro do tempero pronto. Hoje isso foi útil.

Tem gente que diz cozinhar sem provar a comida. Acho impossível. Só pelo olho ou pelo nariz não consigo saber se atingi o objetivo. Saber, aliás, é irmão de sabor – em Portugal é comum esse uso do verbo saber: “esta comida me soube muito bem”, para dizer que achei a comida saborosa. Para nós é um uso tão diferente, mas, eu digo, é tão poético. Eu fiz a comida, provei, e ela me soube muito bem: ela tem o gosto bom que eu lhe imprimi, então ela me entendeu, leu meus saberes, conheceu o que eu gostaria de sentir com o paladar. Ela também me saboreou, por isso me soube bem.

Vejo que minha relação com a escrita é igual à relação com a cozinha: a razão para não fazer é sempre a falta de tempo; escrever e cozinhar requerem conclusão, uma tarefa a ser terminada, e sou muito dispersiva; no fundo, acho que ver algo pronto – a comida ou o texto – leva a um vazio, ou a uma dúvida; se por um lado vou aproveitar aquilo que fiz, por outro sei que terei que fazer de novo, mais uma vez, todo dia, que assumi um compromisso ao terminar (um compromisso com o desejo e a saciedade), e que da próxima vez terá que ficar melhor.

Na cozinha e na escrita, o corpo importa tanto. Cozinhar pede movimento, amplo ou fino, idas e vindas; depois de um tempo, a coluna queima, os pés pesam. Mas o movimento do corpo faz a imaginação se mover também. Tenho um corpo inquieto, que cala a mente quando precisa ficar parado; então, sentar diante do computador para escrever é o primeiro passo para fazer dar errado. Cozinhando hoje, me mexendo entre a pia e o fogão, as ideias vieram rápidas, quase caíram na panela. Tive que largar tudo lá, vir anotar. Quando voltava, mais ideias pulavam, como a sopa de beterraba no fogo, quase me queimavam. Gravei áudio, para facilitar. É tudo processo, cozinhar e escrever, deve estar aí a identidade. É tudo sentido e saber.

Então, como quem cozinha, vou cumprir também essa tarefa de escrever. Cansativas as duas, mas mais assustadoras de fora do que de dentro; dois fazeres que trazem dores e prazeres antes e durante, mas sabor no final. Dois processos de se pôr à prova, o corpo todo, para no final degustar – é o mesmo que se conhecer.

Quem não se sabe não consegue escrever.  


7 comentários:

  1. Compartilhamos o prazer da leitura
    da escrita e dos sabores.
    Alimentos do corpo e do espirito,memórias afetivas.dos sons,aromas como a madeleine de.Proust.

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  2. Que delícia me saber pelo sabor de te ler!

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    1. Que bom poder partilhar os sabores e os saberes, amiga! <3

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  3. Muito prazeroso! Tanto quanto comer! :D

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  4. Parabéns pelo blog, minha querida! Tá lindo! Vc faz uma falta danada no IF! Saudades!

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