sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Não são parágrafos, são gavetas.

Arrumar meu armário de roupas todo janeiro: seguir o ritual. Em janeiro de 2021, abro as portas, tiro os cabides e parece que desfaço o armário de uma defunta. Roupas sem uso há quase um ano, que serviam àquela pessoa, não sei se a esta; o corpo é o mesmo, mas mudaram as medidas do modo de ser. Alguém morreu, por isso desarrumo seu armário, sem saber quem ocupará seu lugar. E precisa? 

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Parem a moda. Vou usar em 2021 as mesmas roupas de 2019, início de 2020 (como se eu já não fizesse isso com as que completam década). Vou estrear a calça da liquidação do ano retrasado, vermelha, porque me interditaram a inovação por um inverno. Não tem serventia renovar um guarda-roupa que adormeceu por 10 meses e só denuncia a passagem do tempo pelo cheiro de guardado.

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A mãe me deu uma sandália de Natal. A mãe sempre me dá uma sandália, às vezes no aniversário, acho que pra não esquecer o hábito de todo ano os pés crescerem, essa menina está sem sapatos de novo. Fico grata; nos adultos, calçados se gastam, é o chão que cresce neles, os passos os devoram. Mas, arrumando o armário, descobri as sandálias de 2019, intactas, um uso talvez. Olha, mãe! Não lembrava… nem eu. Será que vou conseguir caminhar dois pares de sandálias novas para fazer jus às de 2021? 

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Dispenso presentes este ano. Digo objetos, traquitana. Roupas e sapatos nem pensar; tudo aqui já está demais, e nem consegui desapegar de muitas peças. Aniversário logo vem, e penso o que vou pedir se me perguntarem. Me deem acontecimentos, quando for possível: passeios de graça, uma roda de samba, uma sessão com massoterapeuta. Companhia para caminhadas, sabendo que no meio do caminho vou virar andarilha e não vou mais parar, apenas ir sem sentimento. Um sorvete (pode ser caseiro) numa varanda, uma tarde na rede, uma dança, ou várias. Convite para conhecer um novo café; uma sessão de leitura (você lê pra mim; posso ler pra você também); uma volta no centro do Rio, um dia inteiro; parques, muitas árvores e cheiro de mato. Não me parece que faz sentido outro tipo de presente nessa nossa vida pandêmica arrastando o passado como correntes de amarrar barco, ansiando pelo futuro como quem espera o ônibus sempre atrasado e olha muitas vezes para a esquina, desejando que o ímã do olhar o traga logo, mas sabendo que não adianta nada.

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Maria sempre diz: "quando acaba a arrumação do armário, sobram os restos pra engolir". Maria sabe muito de arrumação e armários, os de bastante gente, por vários anos. E é isso o que acontece de fato - depois de tudo guardado, aquelas sobras incômodas nos franzem a sobrancelha e inquirem: quem devorará a quem? Uns brincos sem par, mas que são lembrança de viagem, um presente que não agradou, fotos de gente avulsa na linha do tempo; objetos sem categoria, não dá para agrupar com nada. Podem também ser uma denúncia de acumulação e apelo ao desapego. Mas me soam mesmo como o lembrete daquilo que não se encaixa e que persegue toda vida: ei, olha só, o espírito organizador é uma ilusão de ótica do controle.